A CASA DE MORAR A VOZ É O CORDEL
Por Augusto Niemar
O Encontro de Culturas Literário convocou cordelistas para essa grande arte – que é o encontro. E a base do cordel é justamente o encontrar. Para nós, ele nasceu justamente da vontade de encontrar para contar histórias. Todo cordel enseja o desejo de narrar uma trama, um drama, tantos enredos e tantos segredos. Da força do artista popular, no Encontro, na Arte, que quer levar sua palavra-verso ao mundo-palavral do verbo-em-raizama o cordel nos chama – chamado palavral contra a chama no matagal.
Essa tradição nasce das margens, do confronto ao cânone literário e do desejo de ser e ter voz em livro. Mesmo que o livro seja um folheto no meio da praça, papel-jornal no redemunho no meio da rua, tudo é contado e cantado por “ambulantes de Deus” – como diria Hermilo Borba Filho.
Nas raizamas, em performance, o cordel agrega a fala, a publicística do feirante, o canto que propaganda e que insere um produto específico entre produtos gerais. Pensando com a literatura de campo, a valorização e a circulação de material escrito, as heranças de saltimbancos e transeuntes, dos andarilhos e dos ambulantes, a liberdade do cordel dialoga com as verdades e caminhos para reinventar no inventado. E assim, introduz-se de forma ousada, livre e alegre, em um campo diametralmente oposto à hierarquia, e funda uma raizama com suas raízes e seus rizomas que pleiteiam o direito ao literário. Muito antes do importante crítico Antonio Candido (em 1988), o cordel, no Brasil, é a primeira manifestação que arroga o “direito à literatura”. Uma vez que o “direito de performance” é dado pelo livro-em-corda, pelo folhetim-em-simplicidade, pelo papel-que-circula, as marcas da tradição do discurso oral e do discurso de feira irrompem: o exagero e a louvação irônica do objeto livresco afirmam uma fama (famigerada, como diria Guimarães Rosa) e a importância do que é aventado, livrosia.
O nó literário se dá na certeza das aventuras cantadas, das sagas coloridas, dos pavões misteriosos e dos mistérios entre catábases (aos infernos) e anábases (aos céus), ressurreições carnavalizadas e até bichos que “comem e descomem dinheiro”! Tanto disso transformado em livro, que divide com os secos e molhados, a comida e a bebida, as necessidades básicas do humano: comer, beber e contar histórias. A personificação de figuras históricas e mitológicas, memoráveis e heroicas, conjugam não só a performação de posturas e hábitos a serem re-cordados (lembrar pelo coração), bem como uma mistura de gêneros (elevados e populares). Um bom exemplo é o cordel de Julie Oliveira:
Peço às Musas ancestrais
Que aos gregos de outrora
Davam luz e inspiração
Pra me inspirarem agora
Enquanto versejo aqui
A história de Pandora!
Por estar ligado a um enredo, afirma sua ligação estilística com o todo e pelo sentimento de estar publicando – enquanto canta – a conversa versatória, a vocalidade versiva e subversiva movimenta a memória do diálogo entre duplas que se desafiam, o dito popular, a paródia da tradição, o julgo da razão, o galope, o martelo, “os urros do sapo boi” (como diria Bandeira), os “urros do tambor onça” (como diria Iryna Maia). A coletividade engendra um coro necessário à constituição do cordel – na corda (bamba), na feira (palco dos acontecimentos), o livro cantado enreda (faz-se-enredo) no mundo. E o cordel, pelo meio dos caminhos, com toda liberdade e capacidade de criar um mundo e estar no mundo, tem suas próprias normas e regras estabelecidas:
Nesse mesmo meta-caminho há um (quase) ditado popular que define a (famigerada) poética do cordel: a maioria dos textos é composta por estrofes de seis versos (sextilhas), com ocorrências em sete versos (sextilhas, normalmente humorísticas e nonsenses). Nas sextilhas, o esquema de rimas mais utilizado é o ABCBDB – com o processo consonante acontecendo no segundo, quarto e sexto versos. O próprio cordelista de Brasília Gustavo Dourado assim meta-explica melhor:
Trazer nomes de autores é sempre um risco, pois há-sempre o esquecimento de alguém – deveras muito importante. Tentando deixar o mínimo de nomes de fora de uma lista muito longa, entre pesquisas, memórias e consultas com amigos cordelistas, destacamos algumas figuras importantes para essa tradição: Leandro Gomes de Barros e Silvino Pirauá, João Martins de Athayde e Patativa do Assaré; Gonçalo Gonçalves e Paulo Nunes Batista; Zé Pachedo da Rocha e Marco Haurélio, Gustavo Dourado e Sabiá Canuto.
E sem esquecer a produção de Dona Josenir Lacerda (Crato, Ceará, 69 anos), “uma pilar” da história do cordel escrito por mulheres – que são muitas: Izabel Nascimento, Anne Karolynne, Daniela Bento, Isis da Penha, Paola Tôrres, Mariane Bigio, Bia Lopes, Keyane Dias e Josenir Lacerda (fonte: Julie Oliveira).
Para nós, a palavra cordel abriga uma raizama linguística: cordis (coração; re-cordação). Nem-raiz-nem-rizoma da palavra, mas os sentidos dos versos profundos que batem, marteladamente ou não, dentro do coração. A partir da voz e do contato com a terra, da performance e do discurso de feira, tudo se abre e tudo encerra. Alguns acreditam nos livretos pendurados em corda, em um cordel, como dizem os lusitanos! Outros negam até a vida; e imaginam os livretos em mesinhas improvisadas no meio da praça, no meio da feira, no meio do mundo.
O cordel retoma histórias e estórias (como diziam Cora Coralina e Guimarães Rosa) e coloca em xeque o senso privado da palavra. O cordel movimenta um núcleo e o/a geopoeta assina, o gravurista (ilustrador) expande esse universo e aquele papel de folha. Livre do peso da editora, do editor, da inquisição e da censura o cordel se lança – de feira em feira, de barraca em barraca, de cordão em cordão – em flor!